Pelas 6:40 do dia 4 de Julho de 2017 chegava ao topo do pico Huayna Potosi, na Bolívia. 6088m acima do nível do mar, senti a adrenalina da prova superada e a paz do cume. Cerca de um ano depois, praticamente à mesma altitude e ao fim de 3 dias de subida, decidia abortar a ascensão ao Nevado Sajama, a mais elevada montanha da Bolívia, com 6542m. Dois empreendimentos semelhantes, com sucessos diversos e aprendizagens complementares.
Do cimo do Huayna Potosi, a noite ainda cerrada, apenas se adivinhava o dealbar do dia, no horizonte Leste, por cima da selva amazónica. Os -15ºC mal se faziam sentir, os ventos fortes que me sopraram ao longo de quase toda a subida haviam cessado, como que por magia! À medida que a luz ia enchendo, na metade oriental do campo de visão a neve ganhava cores indescritíveis, desvendando novas formas na montanha. A ascensão começara as 1:30, após quatro horas de sono entrecortado, entre o efeito da altitude e a ansiedade pela subida. A lua, num quarto crescente já avançado, iluminava como se dia se tratasse. À parte o vento, nada mais se escutava. Nestes ambientes a escolha de roupa é fulcral. Demais será um peso e provoca sobreaquecimento e suor, que depois arrefece rapidamente; e pouca arrisca exposição ao frio considerável que se sente no topo. Muita água é fundamental, mantimentos calóricos e, claro, folhas de coca em abundância!
O campo alto – um refúgio básico, a 5130m de altitude – é a base para o ataque à montanha. 4 a 5 horas de subida, 2 de descida. À medida que as hostes vão acordando, espaço apertado mais parece uma torre de Babel – gente de muitos pontos do globo congrega-se aqui, com o olhar brilhante e garganta seca, sensações comuns em pessoas tão diversas. Nem todos chegarão ao pico. A subida iniciou-se então, na companhia do Teo Quispe, guia de montanha boliviano, a passo lento. Muito lento. O efeito da altitude revelou-se: mais de duas semanas acima dos 3500m de altitude e 3 dias aclimatação não foram suficientes. As dores de cabeça intensas depressa se fizeram anunciar. A cada 45 minutos, paragem. Não mais de 2 ou 3 minutos de cada vez, para não arrefecer ou perder o ritmo. Aos 5900m, a dúvida instala-se. Está-se quase lá. Mas o “quase lá”, no entanto, eram quase 200 metros em altitude, e a parte mais exigente da ascensão. Uma parede de neve e gelo erguia-se à nossa frente. Só de dia se tem noção da sua total dimensão. Os últimos 100 metros foram quase feitos na vertical, crampons espetados de frente, piolet usado para subir o peso do corpo, atenção plena em cada movimento.
A subida ao Huayna Potosi não é tecnicamente difícil (pelo menos quando feita pela rota normal). Ainda assim a parede final, na subida, e a descida por uma estreita aresta exigem atenção e à-vontade em zonas expostas. Há quem diga até que é o 6000 mais acessível do mundo. O mesmo não se pode dizer do Nevado Sajama. Apesar de também pouco técnico, apresenta uma parede de aproximadamente 200m com inclinação superior a 60º, sobranceira a um enorme precipício. Mas é sobretudo o clima e a orografia que fazem a diferença. Mais próximo do oceano Pacífico, recebe a humidade que os ventos de Oeste trazem, provocando o descongelamento da neve de dia e congelamento à noite, o que provoca os penitentes – formações que podem chegar aos 70cm de altura, em forma de agulhas, e que dificultam tremendamente a progressão. Por outro lado a natureza da montanha – é um vulcão – significa que o solo abaixo da linha de neve é muito mais solto e inclinado, tornando a subida significativamente mais exigente.
Ao contrário do Huayna Potosi, que é facilmente acessível a partir de La Paz, o Sajama implica uma viagem de muitas horas. A aldeia mais próxima tem poucas estruturas, por isso as tendas e toda a logística associada tornam-se obrigatórias. E a quantidade de montanhistas é infinitamente inferior. Em 3 dias na montanha cruzei-me apenas com duas equipas – uma francesa, de 3 montanhistas, a outra argentina, com 3 membros. No dia da ascensão era o único forasteiro na montanha – uma sensação de isolamento tremendo, de silêncio, que permanece no meu imaginário, muito para lá da frustração de não ter chegado ao topo. Rapidamente percebi, e de forma dura, o porquê de esta montanha ser tão pouco frequentada. Uma sequência de eventos ditou o insucesso da subida ao pico. Uma gripe na semana anterior abateu a parte física, o porter que não apareceu no dia de subida ao Campo Alto sobrecarregou a mochila durante 1000m de subida em altitude, e as más condições de neve, associadas a (retrospectivamente) uma insuficiente preparação física ditaram que tenha somente chegado aos 6000m e a uma mão cheia de horas do objectivo. Expectativas não concretizadas são geralmente fonte de tristeza e desalento. Ainda assim a experiência foi extremamente enriquecedora, pela aprendizagem dos limites, da importância da preparação e pela paisagem intocada do deserto boliviano.
Dia 1.
La Paz . Campo Base (4700m) . Treino de aclimatação . Escalada em gelo no Glaciar Viejo
Dia 2.
Trekking Campo Base (4700m) . Campo Alto (5130m)
Dia 3.
Ascensão Campo Alto (5130m) . Pico (6088m) . Campo Base (4700m) . La Paz
Dia 1.
La Paz . Sajama . Trekking Campo Base (4500m)
Dia 2.
Trekking Campo Base (4500m) . Campo Alto (5500m)
Dia 3.
Ascensão Campo Alto (5500m) . Pico (6542m) . Campo Base (4500m) . Águas Termales
Dia 4.
Sajama . La Paz
Amante da montanha desde a juventude, a motivação ao subir a estes picos foi experimentar algo para lá da minha zona de conforto. A chegada ao pico Huayna Potosi, ainda de noite, com as cidades de La Paz e El Alto iluminadas, ao longe, pareceu inverosímil. Sensação semelhante deu-se mais a sul, na encosta do Sajama, com uma lua cheia, perfeita, a pôr-se atrás dos picos gémeos Parinacota e Pomerape. Naqueles instantes nada mais importava, absorto no agora…